segunda-feira, 21 de setembro de 2009

NARRADORES de JAVÉ - reflexão de uma cursista

Gestar II – Português
Cristina Domingues Lemos

Análise do filme Narradores de Javé [1]

A palavra tecida a partir de uma multidão de fios ideológicos,
serve de trama a todas as relações sociais em todos os domínios.
(Mikhail Bakhtin)
O enredo de Narradores de Javé não é linear, isto é, não segue uma seqüência cronológica, desenvolve-se descontinuamente, com retrospectivas, cortes e com rupturas do tempo em que se desenvolvem as ações. O tempo cronológico mistura-se ao psicológico, da duração das vivências das personagens. O espaço exterior se mistura aos espaços interiores (memória e imaginação das personagens).
Por conta disto, as mudanças de cenário acompanham as situações vividas pelas personagens, nos diferentes espaços e tempos.
No início, um contador de causos encontra sua platéia, às margens de uma represa, num ponto de travessia. Este cenário é visitado regularmente durante o filme, pois os interlocutores, de tempos em tempos, trocam impressões e debatem os fatos narrados. Já o cenário do causo própriamente dito, é uma comunidade muito pequena, perdida no sertão nordestino, chamada Vale de Javé. Neste cenário agreste, a odisséia do povo guerreiro de Javé começa a ser contada, e recomeça quando menos se espera. O causo, a narrativa vinculada a oralidade e a tradição, dá vida a esta história que tem a intenção de rememorar o passado.
Já na abertura do filme, as letras e os sinais de pontuação recebem destaque. Dançam, se encontram, interagindo também com outros objetos (tesoura, sinuca...). Até ideogramas aparecem para compor a idéia de mosaico de que seria apresentada no filme. Esta questão do letramento é abordada de diferentes formas durante a narrativa: na fala das personagens - “Eu que não sou das letras(...)”, nas divisas cantadas, na ideia de fazer um “trabalho científico”, até na ironia da placa pregada na soleira da porta do escrivão Antônio Biá – “Proibida a entrada de analfabetos”.
Excluído da sua comunidade, por ter se aproveitado de seu cargo e posição social para receber vantagens. Neste caso, escreveu cartas que, além de difamar a todos da comunidade, eram exageradamente mentirosas. A ira da comunidade, basicamente formada por analfabetos, levou Antônio Biá a viver bêbado e isolado de todos. O caráter desonesto de Biá reaparece quando o barbeiro oferece propina para aparecer como um dos destaques na história de Javé, e Biá aceita, sem pestanejar. Em alguns aspectos, Biá lembra um pouco Macunaíma – o herói brasileiro por excelência, o herói sem nenhum caráter.
Características de personagens da literatura de cordel também compõem a personalidade de Antônio Biá. Assim como João Grilo, por exemplo, Biá apresenta uma fina ironia, acidez nas críticas e uma falsa erudição, denunciada no uso de expressões como lembranças javélicas ou gróticas, históricas ou pré-históricas.
Apesar de tudo, Antônio Biá é visto como o único que poderá ajudar o povo de Javé, registrando em livro a história gloriosa de Javé. O livro é chamado, inclusive, de o Livro da Salvação. Ele deve transcrever a Odisséia de Indalécio e Maria Dina, além de recuperar detalhes, marcas e provas, para tornar científico o seu registro.
A tradição oral em Narradores de Javé é apresentada não só nas histórias dos mitos de criação da comunidade, mas também nas variações deste mito. Ao aparecer ora como homem, ora como mulher, sertanejo ou ex-escravo, Indalécio reencarna a questão do mito que se transforma através da oralidade do povo que o perpetua em seu imaginário.
Os ditados populares, marcas da cultura oral, também aparecem no filme: “Quem muito fala, dá bom dia a cavalo.” Aliás, as citações de Antônio Biá talvez sejam a única ligação da comunidade de Javé com a cultura letrada ou contemporânea: Clonado em miolo de pão, Einstein ou Santo Agostinho, saionara, formiga ninja, habeas corpus com corpus cristi, entre outras.
Biá é homem que “só sabe escrever a lápis”. Entretanto, escritor criativo, é capaz de “melhorar” algum trecho da narrativa e de criar imagens como o “mar de bois” ou soluções para o roteiro como “sapatos” para o boi roubado. Para a comunidade, entretanto, o que entendiam de histórias escritas se restringia a ver que a mão deveria se mexer sobre o papel, para que algo estivesse realmente sendo escrito.
Assim com Biá levou ao povo de Javé a possibilidade de ter contato com o conhecimento através da leitura e das trocas realizadas entre letrados e não-letrados, o professor, em sala de aula, também será o condutor dos alunos tanto à literatura quanto a cultura contemporânea. Será ele, inicialmente, um escrivão, mas deverá promover seus alunos também a pequenos escritores, sujeitos em seu lugar histórico, capazes de transformá-lo através de seu discurso e intervenções no contexto social.
[1]Ficha Técnica - Título Original: Narradores de Javé. Lançamento (Brasil): 2003. Direção: Eliane Caffé.

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